1. São crescentes os litígios nos quais se discutem responsabilidades e imputações relacionadas com alterações climáticas. Não se trata apenas de litígios iniciados contra Estados ou entes públicos, nem de litígios de direito público (administrativo e constitucional). Com efeito, há vários litígios movidos por privados contra privados, em torno de problemas de responsabilidade civil privada e há, também, ações de entes públicos (Estados e municípios) movidas contra sociedades comerciais em setores de atividade “carbono-intensivos”.
2. Entre os litígios que envolvem sociedades comerciais, destacam-se disputas fundadas em incumprimento de deveres de due diligence no plano ambiental, litígios de responsabilidade civil extracontratual por danos, litígios de alteração das circunstâncias ambientais ou de “força maior” ambiental, entre outros.
3. Em Portugal, conhecem-se algumas decisões, sobretudo no domínio na falta de cumprimento do contrato e da responsabilidade civil contratual, mas não existem ainda níveis de litigância comparáveis com outros países, como a Alemanha ou Holanda, para nos limitarmos ao universo europeu.
4. Sobrevoando os litígios judiciais privados, com impacto no direito contratual, destaca-se o Ac. do S.T.J. de 06-04-2021(Processo n.º 5760/18.0T8STB.E1.S1). Trata-se de um caso em que o devedor (fornecedor português) alegou falta de produção de azeite resultante de alterações climáticas, enquanto justificação para entregar apenas parte do fornecimento ao credor (adquirente italiano). O credor alegou ter sido obrigado a adquirir azeite a outros produtores, por um preço superior, e intentou uma ação contra o devedor, pedindo a condenação numa indemnização por estes “negócios de cobertura”. Em causa estava um fornecimento de azeite no ano de 2014 e, entre os factos provados em primeira instância, ficou assente que “no Outono de 2014, as temperaturas foram superiores à média, tendo sido o outubro mais quente desde 1931, o que potenciou o desenvolvimento de doenças criptogâmicas e o ataque de pragas” e que, em virtude de nova praga, “a ré teve uma quebra de produção de cerca de 50% em relação aos anos anteriores”. Ficou ainda assente que “a produção total de azeite em Portugal foi de 91,6 mil toneladas na campanha 2013/2014 e apenas de 61 mil toneladas na campanha 2014/2015” e que tendência análoga se registara em outros países europeus produtores. Entre os vários aspetos discutidos, a Relação decidiu, e o Supremo confirmou, que o devedor não poderia eximir-se ao cumprimento por alteração das circunstâncias, dado que “a quebra de produção de azeite decorrente de condições climáticas adversas (como as mudanças de temperatura, cada vez mais habituais, ou a possibilidade de ocorrência de doenças nas culturas) – a que tal atividade está, por natureza, sujeita – também não poderia, sem mais e em rigor, configurar uma alteração “anormal” (e de todo imprevisível) das circunstâncias causais da celebração do negócio por ambas as partes”. Que tipo de cláusulas poderiam ter acautelado a posição da produtora de azeite? Constituirá esta decisão uma ponderação generalizável quanto ao conceito de “anormalidade” para efeitos do artigo 437.º, em matéria de alterações climáticas?
5. Num outro litígio privado, em que estavam em causa danos causados pela queda de um poste elétrico em virtude de ventos fortes, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou que ventos de 90 km/ hora são circunstâncias cuja imprevisibilidade não foi provada, sendo por isso previsíveis. Nessa medida, considerou que se aplicava uma norma que impunha um dever de utilização e conservação de equipamentos perante o seu funcionamento previsível - “normal” ou “anormal”, desde que previsível. (Ac. de 17-03-2005, Processo no 332/2005-2). Este acórdão deixa-nos interrogações. Qual o standard da prova? Qual o padrão de “previsibilidade”? E, ainda, qual o padrão de “normalidade”?
6. Os casos acima referidos são pontuais e discutem matérias limitadas, ainda que unidas pela questão comum: o que é hoje imprevisível? O que é hoje inesperado em matéria climática? E incontrolável?
7. No “Global Climate Litigation Report: 2023 Status Review” da ONU (p. 12), indica-se que, em dezembro de 2022, existiam 2.180 casos relacionados com alterações climáticas em 65 jurisdições.
8. No palco europeu, ficou conhecido, nos últimos anos, o caso Milieudefensie et al v. Royal Dutch Shell PLC, do Tribunal Distrital da Haia, 26 de maio de 2021, C/09/571932/HA ZA 19-379, no qual uma sociedade-mãe foi condenada a reduzir os níveis de emissão de dióxido de carbono, com fundamento numa espécie de “dever de cuidado tácito”. Que saibamos, não existem decisões semelhantes, nem análogas, na jurisdição portuguesa.
9. No nosso País, está em vigor a Lei n.º 98/2021, de 31 de dezembro (Lei de Bases do Clima) e fontes oficiais reconhecem que “Portugal é um dos países Europeus mais afetados pelas alterações climáticas, um dos chamados hot spots da Europa. Os efeitos das alterações climáticas entre nós incluem o aumento da temperatura, a alteração dos padrões de precipitação, a subida do nível médio do mar e os fenómenos meteorológicos extremos, que acentuam as pressões sobre o litoral, os riscos de incêndio, de seca e de inundações” (Augusto Santos Silva e João Pedro Matos Fernandes, com o apoio técnico da APA, Acordo de Paris 2015-2020, p. 9).
10. Num outro plano, e reforçando os deveres de atores privados nesta matéria, encontramos a proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Fevereiro de 2022, relativa ao dever de diligência das empresas em matéria de sustentabilidade e que altera a Diretiva (EU) 2019/1937. Entretanto, em Portugal, com base no artigo 64.º do CSC, algumas posições sustentam a existência de um “stakeholders model”, apto a tutelar interesses que não apenas os interesses lucrativos dos sócios, mas o ponto continua a suscitar controvérsia.
11. Na doutrina estrangeira, alguns Autores salientam a inadequação do regime da responsabilidade civil para resolver contingências causadas pelas alterações climáticas, salientando os obstáculos intransponíveis da insusceptibilidade de prova de causalidade entre o alegado dano e a emissão de dióxido de carbono em certo nível (assim, Gerhard Wagner & Arvid Arntz, Liability for Climate Damage under the German Law of Torts, SSRN, 2021). Contudo, não é certo que o próprio regime da responsabilidade civil não venha a ser interpretado (ou mesmo modelado) de forma a responder às exigências, mesmo sem alterações legislativas, sobretudo estando em causa direitos fundamentais (Kahl/Weller, Liability for Climate Damages – Synthesis and future prospect, in Kahl/Weller, Climate Change Litigation, A Handbook, Beck, 2021, p. 535 ss).12.
12. Neste contexto, não está excluída a expansão de um “contencioso ambiental privado” em Portugal, sendo até previsível que a mesma se concretize. Se for o caso, o direito privado em ação terá de responder a questões complexas, nomeadamente no que respeita à causalidade (artigos 562.º e 563.º do Código Civil) e ao próprio conceito de dano. Se não for o caso, ainda assim, observando os litígios ambientais pelo mundo fora, o direito privado em reflexão suscitará já várias perguntas: deve o direito privado servir ativamente a tutela do interesse de transição para uma economia sustentável? E caso afirmativo, com que limites? Afirma-se uma ordem pública ambiental, de cariz internacional ou mesmo transnacional? E, se for o caso, com que limites?