Reservas (non-binding e outras), acordos de negociação e indemnização pelo lucro cessante do negócio alternativo perdido.
Reflexões em torno de um acórdão do T.R.L.
1. Numa aula recente, tive oportunidade de discutir a seguinte questão: Até que ponto o artigo 227.º/1 do Código Civil pode servir de fundamento a uma ação de responsabilidade civil por abandono das negociações, quando um contraente ressalvou, de forma direta ou indireta, a possibilidade de frustração do negócio? Em particular, numa negociação, ao longo da qual tenha sido subscrita uma carta de intenções ou tenha sido acordado um instrumento análogo com reservas, qual o efeito dessas reservas na relação pré-contratual e na confiança criada na contraparte? A questão é teórica. Prende-se com o alcance da tutela jurídica na formação de negócios e, nos Direitos de influência germânica, com a projeção da boa-fé no domínio pré-contratual. É também uma questão prática, considerando a frequência com que são utilizados acordos de negociação em transações comerciais e incluídas reservas nos mesmos, com indicação “subject to contract”, “non-binding” ou expressões análogas.
2. A título preliminar, deixo duas clarificações. Primeira, o universo em que nos encontramos exibe uma enorme diversidade. Além das cartas de intenções (também estas moldadas caso a caso pela autonomia privada das partes), os instrumentos análogos em causa podem ser memorandos de entendimento (memorandum of understanding), princípios de acordo (heads of agreement), cartas de intenções (letters of intent), cartas de compromisso (engagement letters), termos da negociação (term sheet), entre outros. Alguns (a maioria) visam apenas enquadrar e disciplinar o procedimento negocial que se irá desenrolar entre as partes. Outros, adiantam aspetos quanto ao acordo definitivo. Alguns são unilaterais, outros bilaterais. Alguns tornam as negociações exclusivas, outros não. Alguns têm prazo, outros não. É evidente que, num tal universo de diversidade, as soluções finais não podem adequadamente ser fixadas em abstrato; não obstante, é útil e favorece a segurança jurídica fixar algumas coordenadas quanto a estes acordos de pura negociação.
3. Uma segunda clarificação preliminar útil respeita à natureza das reservas do contraente. Tais reservas podem, de igual modo, ser variadas, sendo as mais frequentes tanto a reserva de aprovação do órgão de administração da sociedade como aquilo que podemos chamar de “reserva de vinculatividade” ou declaração de não vinculatividade (non binding clauses). Aliás, tais reservas também são comuns em acordos parciais.
4. O problema foi discutido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21.11.2019, relatado pelo Juiz Desembargador Luís Correia de Mendonça. Sintetizando o contexto e a factualidade (que é mais complexa) esteve em causa um recurso de apelação de uma decisão do juízo central cível de Lisboa. Esta decisão de primeira instância julgara improcedente o pedido principal de condenação das Rés no pagamento de €6.216.538,50, deduzido com fundamento principal na recusa de contratar por parte destas num negócio de aquisição da posição de distribuidor de produtos da APPLE em Portugal. A Relação, por seu turno, discordou do entendimento da primeira instância e condenou as Rés a pagarem à Autora a quantia de € 5.740.000, acrescidos de juros vencidos e vincendos desde a citação até integral pagamento, calculados à taxa legal. O Tribunal da Relação, em síntese, decidiu que a parte que abandonou as negociações devia indemnizar a contraparte pelo valor do negócio que esta deixou de celebrar com um terceiro, por esta ter confiado que o negócio se concluiria.
5. Este acórdão pode ser analisado sob várias perspetivas, discorrendo sobre vários assuntos com interesse, como cartas de intenções, deveres de lealdade, natureza da responsabilidade pré-contratual, indemnização pelo interesse contratual positivo e negativo, acesso a informação comercialmente relevante, entre outros aspetos. Salientarei apenas um: o do entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa quanto às reservas apostas numa carta de intenções.
6. O Tribunal da Relação não qualificou a carta de intenções como um acordo parcial, nem entendeu que existia o dever de celebrar o contrato definitivo. A questão aparenta situar-se, pois, no domínio dos acordos de pura negociação. Ao tratar da ilicitude, realçou que as Rés descobriram na due diligence uma dívida da Autora superior ao preço de compra do ativo e, receando que os terceiros credores assacassem responsabilidade às Rés, estas comunicaram à Autora que a transação projetada não seria viável. Até esse momento, as Partes tinham trocado várias cartas de intenções e, na última delas, podia ler-se “esta carta é enviada apenas para fins de discussão” e que a mesma “não é vinculativa”, apenas se destinando “a descrever em linhas gerais determinados pontos básicos dos entendimentos comerciais em torno dos quais os contratos legais definitivos (“Contrato definitivo’’) podem ser estruturados’’. A dita carta de intenções referia ainda que “a assinatura de um contrato definitivo” estará sujeita a determinadas condições suspensivas, incluindo um conjunto de situações relativas a terceiros e, também, à aprovação da transação pelo Conselho de Administração de uma das Rés. Segundo a factualidade descrita pelo Tribunal, as obrigações de exclusividade da carta de intenções permaneceriam em vigor até que ocorressem certos eventos, sendo um deles a cessação formal por escrito das negociações. Finalmente, a referida carta previa a realização de uma due diligence, na qual se incluiriam “todos os aspectos e elementos do exercício da actividade pela Cedente e em particular questões de TI e integração comercial, inventário, activos, passivos, contas, contratos com vendedores e clientes, conformidade com todas as disposições legais e regulamentares, incluindo disposições de garantia financeira e fiscal, litígios e potenciais pedidos de indemnização, gestão financeira, equipamento e pessoal da Cedente e, de forma geral, matérias que possam ser relevantes e de interesse (...)”. Quer isto dizer que, independentemente das reuniões havidas, a carta de intenções relevante estabelecia vários momentos prévios à celebração do contrato definitivo e fixava ainda uma reserva de vinculatividade e uma condição de aprovação pelo órgão de administração da adquirente. O Tribunal da Relação não parece, porém, ter atribuído peso significativo a tais reservas do contraente ou, pelo menos, desvalorizou-as por entender que a confiança gerada seria mais intensa. O Tribunal referiu expressamente a existência “de sucessivos acordos escritos em que a manifestação do interesse na formação do contrato por parte das rés se aprofunda” e que “a Autora confiou nessas negociações e na boa-fé das Rés”, acrescentando ainda que o motivo invocado pelas Rés relativo à inviabilidade económica da transação não tinha fundamento bastante. O Tribunal considerou que a parte não desistente teria direito a ser indemnizada pelos benefícios que deixou de obter em virtude da lesão (artigo 564.º), benefícios esses correspondentes àquele que lhe adviria de um contrato que recusou para negociar com a parte desistente. Trata-se de uma indemnização pelo interesse contratual negativo, ressarcindo o lucro cessante.
7. No artigo 227.º/1 CC, o ilícito reporta-se a uma conduta da parte lesante contrária à boa-fé. A imputação de que depende o dever de indemnizar exige não só uma base de confiança qualificada (requisito positivo), como a inexistência de um motivo relevante ou justificativo (requisito negativo). Relativamente à confiança, não basta que uma parte acredite que a negociação chegará a bom porto. É necessário que as circunstâncias pré-negociais, objetiva e razoavelmente, concitem essa mesma confiança.
8. As relações contratuais em formação merecem naturalmente tutela jurídica e a doutrina já realçou que existência de acordos de pura negociação tem efeitos jurídicos, nomeadamente o reforço da intensidade do dever de negociar de boa fé (assim, E. Santos Júnior, Acordos Intermédios: Entre o início e o termo das negociações para a celebração de um contrato, Estudos em Homenagem ao Banco de Portugal, p. 244). Não discordo deste entendimento. Contudo, a combinação de um acordo de pura negociação com uma reserva oferece ao intérprete sinais contrários e ambos devem ser ponderados. Se existirem reservas, estas podem valer (e em princípio, valem) como um reforço de um princípio de “efeito contrário”: o da liberdade de não contratar.
9. O artigo 232.º CC expressamente indica que “[o] contrato não fica concluído enquanto as partes não houverem acordado em todas as cláusulas sobre as quais qualquer delas tenha julgado necessário o acordo”. No contexto mercantil, declarações no sentido de reserva de aprovação pelo conselho de administração, de reserva de vinculatividade ou de outra reserva semelhante incluída numa carta de intenções ou instrumento de pura negociação análogo, podem ser interpretadas como indicações de reforço da liberdade de não contratar. Dito de outro modo, tais indicações podem comprimir o espaço da confiança ou modelar o âmbito da confiança entre os contraentes e, se for o caso, onde poderia haver deslealdade ilícita, passa a existir o mero exercício de liberdade de contratar. Sabendo-se que o negócio está sujeito a pressupostos, a condições, ou mesmo a uma decisão final quanto ao “se” da contratação, a confiança e a lealdade não podem desligar-se deste contexto específico.
10. Na contratação mercantil complexa, sem recurso a autómatos, raros são os diálogos instantâneos. As partes aproximam-se, entabulam conversações, subscrevem acordos de negociação, trocam informações, ponderam cenários económicos e financeiros, pedem informações suplementares, realizam due diligence, utilizam meios tecnológicos, discutem resultados no seio de organizações empresariais. Num contexto internacional, será comum que esse diálogo se alongue e se complexifique, contando muitas vezes com diversos intervenientes na negociação. A culpa in contrahendo proposta por Jhering, em 1861, está bem distante desta realidade. As cartas de intenções e instrumentos análogos são, em regra, acordos de negociação, cujo sentido exato cabe, em concreto, determinar. Havendo reservas, para que o sentido dessas indicações possa ser suplantado por uma “confiança” na continuação das negociações, será necessário que existam sinais manifestos ou evidentes, por parte do desistente, no sentido de “dar como certo” o acordo quanto à conclusão do negócio ao ponto de desconsiderar (ou mesmo afastar) reservas anteriormente feitas. Se for o caso, em rigor, terá sido o próprio entendimento quanto ao quadro negocial que se alterou e, neste caso (e apenas neste), abrir-se-á um “novo” espaço para a culpa in contrahendo. E será neste “novo espaço” que eventuais investimentos ou desinvestimentos realizados pelo contraente que justificamente confiou nas negociações podem ser objeto de um dever de indemnizar fundado na culpa in contrahendo.